Pouca água
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IX

Pouca água

Manhã cinzenta, tarde de sol? No mês de março, pouco provável. Pep se espreguiçava e se prometia mais uma vez (desde a última) que finalmente se levantaria. Olhava ao redor, preguiça de fim de férias, pensava na última mensagem deixada no blog. Terá ido um pouco longe demais? Precisava urgente de um conselho, ou simplesmente transpor a linha do delírio e voltar a realidade. Pensou no amigo fiel Hugo (ops) Plácido (ou seria Plássido?). Mania irritante que ele tinha de a cada nova descoberta espiritual trocar o próprio nome, se auto-intitulando por coisas tão esdrúxulas como Bhaktivedanta Prabu (o que mesmo?).

Não, não foi esse o nome que escolheu para a fase yoga-Índia-incenso que, aliás, comprava aos montes - e ela roubava a metade para fins menos espiritualizantes. Sim, confundia o nome do outrora Hugo com o do guia espiritual. Só sabia então que se referia ao período Hare Khrisna. Sim, também era verdade que em dez anos, o amigo tenha sido um ser tão errante e errado, à sua maneira particular e quase ingênua. Tantas máscaras, tantas peles, para tentar o quê afinal? Paz espiritual? Uma nova identidade? Fugir da realidade irremediável, irretratável e inescusável, pelo menos para ela e ainda nem tanto para ele.

– Hugo eu acho que você é gay, ponto.

Constatação rechaçada veementemente quando ele dizia:

– Já não há lugar para uma alma sensível neste orbe? - palavra que aliás adorava, orbe, desde a época em que era evangélico (ou seria espírita?). Coisa estranha confundir coisas tão díspares haja vista (haja vista?) a guerra santa: evangélicos versus espíritas. Coisa estúpida uma vez que constatara fotografando que, de maneira bem animadinha, aliás, tanto um quanto o outro pegam santo. Pobre amigo... pensava. Pobre o cacete! Perguntara finalmente a Hugo (desculpe Plácido): por que você não dá logo essa porra e depois vê?

Vê o quê sua louca? Nem todo mundo guarda tanto fel (fel?) quanto você e se delicia e além do mais você também faz suas buscas, Hugo diz com um inconfundível tom moralista evangélico (ou seria católico?) na voz.

Sim, concordo, só que as minhas pelo menos são mais divertidas do que as suas.

Ponto intransponível de discordância, terminou a conversa num incômodo silencio.

Sim, manhã cinzenta, tarde fria e agourenta. Primeira obrigação do dia, resgatar o único amigo que tinha, desculpando-se sinceramente. E até quem sabe demonstrar (com a cara mais cínica do mundo) sinto uma grande falta em mim, talvez seja a presença divina (?), talvez me falte a presença de Deus (?). Você me ajuda? Já apelando para o compulsivo bomsamaritanismo do amigo. E já pensando também se ele toparia buscá-la (sim, claro, era a cara do Hugo - desculpe, Plácido), num terreiro de umbanda. Pelo menos lá se não encontrasse Deus, teria cachaça, batuque e dança. E com um pouco de sorte, Hugo (porra, Plácido!) finalmente se encontraria e se transformaria em pai-de-santo (será que todos são viados?). O que importa? Se ele finalmente fosse feliz e não trocasse mais de nome.

Sim, pelo menos seria mais divertido, já pegando o telefone e discando o número tão bem conhecido.


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