LeropqQuero 2005 - o prefácio
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PREFÁCIO





PARA LER COM OLHOS DE QUEM ENTENDE

No ano em que a internet comercial atinge sua primeira década no Brasil, finalmente nos é possível começar a esboçar algumas afirmações mais conscientes (ainda que bastante movediças) sobre qual é, afinal de contas, o seu papel no desenvolvimento e na divulgação da literatura. Perceba que eu disse “começar” e “a esboçar”. Tanta hesitação explica-se pelo simples fato de ser, a rede, um organismo essencialmente mutante, em constante processo de aperfeiçoamento.

Em outras palavras, seria de uma ingenuidade comovente tentar analisar de uma forma puramente cartesiana e linear as transformações pelas quais passou a internet nestes últimos dez anos. Por outro lado, o mesmo não se pode dizer da evolução da percepção das pessoas sobre a web: aí sim algo que pode ser mais facilmente compreendido quando se estende um olhar crítico sobre o assunto.

Pra facilitar: a rede, em si, não mudou tanto quanto mudou a forma como as pessoas vêem a rede e se relacionam com ela. Para ilustrar essa teoria, eis um exemplo prático e muito perceptível: a famigerada linguagem de internet. Vocês sabem do que eu estou falando: todas aquelas abreviações e a desconstrução gramatical surgida por conta da agilidade das salas de bate-papo, troca de e-mails e, mais recentemente, mensagens de celular. No lugar de "você", "vc"; em vez de "por quê?", "pq"; "eh" para fugir do acento em "é" e a mesma lógica no "não" que vira "naum". Enfim.

O surgimento dessa nova linguagem gerou (e ainda gera) uma grande comoção. Os partidários da lingüística defendiam que a língua era um organismo vivo e, como tal, suscetível a esse tipo de reinvenção. Os lingüistas afirmam que o importante é se comunicar, ou seja: entender e ser entendido. Já os amantes da gramática arrepiam os cabelos da nuca e bradam desaprovação de dedo em riste contra esta novidade. Dizem que estamos desaprendendo a escrever, que estamos destruindo o nosso idioma. Quem tem razão? Ambos.

De fato, o que se busca em uma sala de bate-papo, através de uma mensagem de celular ou em um e-mail informal é comunicar. É dizer alguma coisa a alguém. Sendo a língua, essencialmente, um código estabelecido entre o emissor e o receptor de uma mensagem, basta que todos os envolvidos nesse processo conheçam o código (qualquer que seja) para que exista a comunicação. Elementar. Na outra ponta da questão também há verdade: o uso contínuo de um novo código enfraquece o antigo, algo que, de certa forma também ocorre, e pode ser constatado principalmente nas redações de colégio (e mesmo de faculdade), cheias de abreviações, siglas e signos próprios da internet. Igualmente elementar. E agora? A questão fica sem resposta? Eu digo não.

Pense nisso: você não escreve exatamente do mesmo jeito que fala, certo? Você provavelmente substitui o "r" no final de cada verbo por um acento agudo na sua última vogal (dormí, pensá, comê, trabalhá) quando conversa com os seus amigos, mas na hora de passar as mesmas palavras para o papel, existe toda uma solenidade no ato que o impede de cometer essa liberdade. Eu disse “solenidade”, percebe? É precisamente aí que mora o xis da questão. Para todas as gerações nascidas antes dos anos 80, ainda existe a solenidade do papel. Ainda fazíamos trabalhos em folhas pautadas, tínhamos aulas de caligrafia, escrevíamos cartas.

Para as gerações que vieram nos últimos vinte anos, entretanto, essa relação mudou radicalmente. Não existe mais uma separação clara entre a linguagem falada e a linguagem escrita. É uma cadeia de acontecimentos tecnológicos que resulta nessa realidade: do controle remoto da televisão para o joystick do videogame para o teclado do computador para os botões do celular. Não chegou nem a ser um pulo de tão macia que se deu essa transição, de tão natural que aconteceu. E tão rápida! Rapidez, aliás, é palavra chave para se entender o que possibilita o surgimento da linguagem de internet. Os diálogos estabelecidos nos meios digitais fazem a imitação mais fiel que o homem já conseguiu da linguagem falada, que é muito veloz, direta e concisa. E em tempos tão corridos, quando o objetivo é comunicar, não há tempo a perder.

Novamente convido o leitor a prestar atenção num trecho específico desse breve ensaio. Note que eu disse "quando o objetivo é comunicar". Agora chega o momento em que sou obrigado a lhes confessar: sou tanto partidário da lingüística quando da gramática, cada uma a seu tempo, cada uma com a sua função. Sendo assim, "quando o objetivo é comunicar", sou partidário da lingüística. Quer abreviar? Cortar os acentos do português e reinventar a grafia de diversas palavras porque a maioria das primeiras salas de chat tinha uma interface baseada no inglês (um idioma que não permite acentos)? Mais uma vez: "quando o objetivo é comunicar", não vejo problemas.

Agora, literatura é uma outra coisa.

Porque o objetivo da literatura também é comunicar, mas não apenas. E porque na literatura não pode haver pressa, mesmo que seja feita na internet. A literatura induz à reflexão e à contemplação, ao questionamento e à certeza, ao riso e ao choro. Me parece legítimo afirmar que nem todo texto que se escreve é, necessariamente, literatura. E quando estamos falando de literatura, sou partidário da gramática. É simples: há textos que se prestam a um fim e textos que se prestam a um outro fim. Há textos descompromissados e textos comprometidos. Uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa. Que se separem alhos dos bugalhos, portanto: não é porque um novo código lingüístico surge em um novo meio que ele representa um novo movimento, sobretudo literário.

Tudo isso pra dizer que EXISTE, sim, um movimento literário surgido junto com a internet, mas que não tem absolutamente NADA a ver com a linguagem das salas de bate-papo, dos e-mails e das mensagens de celular. Ele tem a ver com algo muito mais importante e rico para a formação de leitores e escritores, algo que é inédito e único na história da humanidade: a desmistificação do processo. Com o surgimento da web, a literatura deixa de ser algo tão misterioso e sagrado e passa a ser acessível a um número muito maior de pessoas. Hoje, um novo autor não precisa mais esperar pela bênção das editoras para ser lido: ele pode colocar toda a sua produção literária à disposição de internautas de todo o mundo em um site.

O leitor, por sua vez, tem acesso aos escritores sem depender da intermediação de ninguém além do próprio autor. Pela primeira vez, leitores e escritores estão em um mesmo patamar, e podem interagir de forma direta uns com os outros. Além disso, os canais estabelecidos na rede tornaram mais intensa a troca de textos, impressões e experiências entre escritores espalhados por todo o território nacional, enriquecendo, de forma pronunciada, a vida literária brasileira. É um evento sem precedentes em qualquer outra época da nossa história.

Abra-se um parêntese, então, para uma curiosa observação que comprova o que estou dizendo: toda essa nova safra de escritores gaúchos, paulistas, cariocas, baianos, mato-grossenses, amazonenses, paranaenses e etc. que se conheceu e se tornou conhecida por conta do advento da internet, (com fanzines, blogs ou sites), REJEITA o uso da linguagem de internet em suas obras. A lista é grande: João Paulo Cuenca, Daniel Galera, Daniel Pellizzari, Clarah Averbuck, Marcelo Benvenutti, Wladmir Cazé, Cecília Gianetti, Delfin, Indigo, Patrick Brock, Emilio Fraia, Vanessa Barbara, Ronaldo Bressane, Marcelino Freire, Joca Reiners Terron. Ainda que sejam pioneiros na utilização da rede para divulgar sua produção literária (e, em muitos casos, ainda a utilizem para esses fins), absolutamente todos os escritores supracitados são fiéis à norma culta. E não por acaso.

Resumindo: linguagem de internet não tem nada a ver com a literatura de internet (que, por sinal, nem existe: literatura de internet é a mesma LITERATURA de sempre, apenas publicada num meio digital). Tem a ver com o contato entre leitor e escritor; tem a ver com a desmistificação do ato de escrever; tem a ver com a construção participativa de algo coletivo. Inspirado nesses aspectos da geração de escritores que publicam na internet é que surge o Lero pq Quero 2005. Neste ano, o Lero pq Quero deixa de ser uma categoria dentro do Prêmio Revelação Literária do Palco Habitasul, e se transforma em uma atividade que visa aproximar o leitor do escritor através da construção de um texto em conjunto, e com o uso de ferramentas disponíveis na internet. Fabrício Carpinejar, Cíntia Moscovich, Paulo Scott e Pedro Gonzaga (além de mim) aceitaram o desafio de escrever, em uma sala de bate-papo, em tempo real, com um grupo de leitores, os cinco textos que vocês lerão nas próximas páginas.

Antes de prosseguir, acho importante explicar como essa atividade foi realizada. Em um primeiro momento, os interessados tiveram de inscrever um texto próprio no site do Palco Habitasul, e passaram por uma criteriosa seleção. Vinte inscritos foram selecionados e, de acordo com o que apresentaram, divididos em cinco grupos de quatro participantes. No dia determinado, cada grupo de leitores encontrava-se com o escritor do dia na área do Palco Habitasul na Feira do Livro e, utilizando cinco computadores conectados entre si, desenvolviam uma história.

Procurei interferir o mínimo possível na idéia e na dinâmica de cada escritor, e deixei que cada um fosse o mais livre possível para escolher formatos e configurações. Delegar (ou não) papéis para cada um dos participantes, em uma espécie de escrita dramática conjunta, definir (ou não) uma linha para guiar a história, coordenar (ou não) cada ação de cada personagem, permitir (ou não) troca de papéis e situações. A idéia original era publicar os textos exatamente como foram escritos, mas logo no primeiro dia se percebeu que isso seria impossível. Por um lado, só uma maior rigidez nas regras poderia controlar o fluxo criativo dos participantes, por outro, isso descaracterizaria o meio, ao subtrair a espontaneidade e a agilidade da web.

Sendo assim, optamos por publicar um texto final, corrigido, organizado e ordenado, ao lado do texto original, onde as idéias se encontram em estado bruto, e não existem preocupações com a ordem precisa das frases, os erros de gramática, digitação e português. Dessa forma, a nosso ver, ficará mais claro entender como funciona o processo criativo literário, e também será mais fácil perceber os limites e as diferenças que existem entre o rascunho da obra e a obra finalizada.

Em Febril, é visível no próprio texto a discussão sobre as idéias, as dúvidas, as tentativas e erros em busca de um fim comum, já que todos os participantes interferem no destino de todas as personagens, que se confundem e deixam o leitor cheio de dúvidas e provocações. Elementos similares estão presentes em Maniqueísmo, onde os focos narrativos se confundem e há múltiplas personalidades trabalhando. Em outros como O triste fim de Paulo Scott, Pteranodon e Ah, os amigos..., existe uma maior organização por conta de uma divisão mais clara de papéis. Quase não há interferências ou modificações entre o original e o final.

Por fim, e antes que você comece a ler os textos que produzimos, é bom que se lembre que seja na folha de caderno, na máquina de escrever ou no computador, a verdadeira arte só encontra força para germinar em meio ao caos, ao desespero e à confusão. Estes elementos, presentes em qualquer esforço artístico, podem ser facilmente observados no processo de criação das cinco obras que produzimos, escritores e leitores, coletivamente, nas quentes tardes do novembro último.

Dito isto não resta mais nada a fazer senão lhes desejar fé, coragem e uma boa leitura!

Cardoso