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Fui-Fui à Vai-Vai
Publicado originalmente na Folha de São Paulo, em fevereiro de 2013, sob o título Baco no Balacobaco ( PDF )

Sempre que fevereiro vem chegando e surge a oportunidade rara de ouvir o lamento de uma cuíca eu me dou conta de que não sei absolutamente nada sobre Carnaval. Em busca de, quem sabe, aprender alguma coisa, fui numa noite de terça-feira até a Bela Vista prestigiar um ensaio do Grêmio Recreativo Cultural Social Escola de Samba Vai-Vai, maior campeã do Grupo Especial da capital, dona de nada menos que 14 títulos.

Dissidência mais arruaceira de um time de futebol e grupo carnavalesco tradicional do Bixiga chamado Cai-Cai, a agremiação nasceu em 1930, na forma de duas manifestações paralelas: o Bloco dos Esfarrapados e o Cordão Carnavalesco e Esportivo Vae-Vae.

Reza a lenda que eram chamados assim ("Vae-Vae") em tom jocoso e adotaram as cores preto e branco como chumbo trocado, já que, por algum motivo esotérico, elas representariam "as cores do Cai-Cai invertidas".

São pouco mais de 19h e, apesar de ainda ser dia claro e estarmos a duas semanas do Carnaval, faz um pouco de frio quando chego à sede da escola, na rua São Vicente. Me dirijo até a bilheteria, mas não há ninguém lá. Um homem grande, coberto de correntes e segurando ingressos e cédulas surradas na porta, diz que é com ele mesmo. Encontro R$ 20 no bolso do casaco, preço exato do ingresso, e consigo entrar.

Curiosamente, nesse caso específico, entrar quer dizer sair. Os ensaios da Vai-Vai acontecem todas as terças, quintas e domingos em plena rua, que fica fechada para os carros durante cerca de três horas. Infelizmente, essa peculiaridade da escola está com os dias contados: o espaço é uma concessão da prefeitura, que pretende usar o terreno em suas obras de construção da linha 6 do metrô. Este é o último Carnaval da escola no endereço.

Ao descer as escadas que me conduzem de volta à rua, sinto a leve intimidação que sempre nos acompanha quando chegamos desacompanhados a um território desconhecido e me encosto na parede. Ainda é cedo e há pouca gente por ali.

À minha frente, na outra calçada, há um bar, tomado por integrantes da comunidade. À minha direita, uma senhorinha a que todos se referem como "Tia", confere os ingredientes do seu bufê self-service de hot dog e tosta uma linguiça na chapa enquanto sua habilidosa ajudante destrincha um pernil. As barracas de bebida e comida começam a ser montadas.

VINHO

Neste ano, além dos tradicionais churrasquinho com cerveja e o dog self-service ultrabombado da "Tia", há também uma curiosa barraca Vinhos do Brasil, servindo suco de uva e vinho em taça de plástico a preços populares (R$ 2). A iniciativa é bancada pelo Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin), não por acaso patrocinador do enredo da escola em 2013, "Sangue da terra, videira da vida: Um brinde de amor em plena avenida --vinhos do Brasil!".

Há inclusive a frase "beba com moderação" no samba. O movimento na barraca do Ibravin é bem significativo, levando em conta a estranha combinação. Talvez o clima esteja ajudando.

Na barraca de churrasquinho, os espetos de coração, linguiça, frango, carne e queijo de coalho custavam invariáveis R$ 3 --o mesmo preço de uma série de batidas, que atiçaram meu paladar aventureiro. Além dos sabores mais domésticos (coco, maracujá) havia os ousados (amendoim, vinho, milho) e os psicodélicos (Halls sabor Extra-Forte Lypthus).

Para a tristeza de minha alma (e possível felicidade de minhas entranhas), a de Halls estava em falta. Acabei pegando uma de coco. Veio num pote plástico, branco e geladinho. Rompi o lacre da tampa e senti aquele buquê característico: traços de metanol, notas de gasolina. Mesmo assim, pelo espírito da noite, dei um gole moderado. Havia pedaços na mistura, supostamente (tomara) de coco.

Nutrido por dois espetinhos de carne e dando bicadinhas cautelosas na batida, fui em direção à bateria, que começava a tocar. Logo aprendi que a lateral da bateria é, por excelência, a zona dos gringos. Ficam todos ali, tirando fotos, fascinados. Lá estava o quintessencial argentino bronzeado de bermuda, moletom e Nike sem meia.

Também um trio de loirinhas, todas de coque, usando roupas muito soltas, caminhando de um jeito muito mole, querendo emular algum tipo de ginga local. Mas a peça de resistência era o tiozão de boina, bigode, mochila e tênis amarelo fosforescente, mexendo pernas e braços de forma inexplicável ao som da batucada enquanto puxava assunto com todo mundo que se aproximava.

Pouco antes das 21h todos os puxadores finalmente assumem seus postos e o ensaio começa. Os espectadores liberam a rua e, durante cerca de meia hora, pouco mais de uma centena de integrantes canta o samba-enredo em "loop" a todo vapor, enquanto desfila pela rua uma dúzia de vezes.

Além da bateria, estavam presentes a ala das crianças, a ala dos compositores, a velha guarda, boa parte das baianas (senão todas), uma ala coreografada, dois casais de mestre-sala e porta-bandeira e um sem-número de passistas absolutamente impressionantes --com destaque para Cláudia Furacão, do alto de seus 17 anos, pouco recomendável para cardíacos.

Ninguém enverga sua fantasia, mas ninguém parece se importar. Exceto por mim. Esperava ver adereços aludindo a Baco, tapa-sexos de folhas de parreira, uma profusão de cachos de uva e a inevitável ala do colono italiano, com o famoso pé rachado (que vem a ser, por sinal, a alcunha do primeiro presidente da Vai-Vai).

Mas Carnaval é coisa séria por aqui, e nada seria revelado antes da hora. As fantasias dos destaques e os carros alegóricos (que ficam escondidos no barracão, a quilômetros dali, no Sambódromo do Anhembi) são mantidos em sigilo total até o dia do desfile. A prática não é exclusiva da Vai-Vai, e respeitá-la faz parte do código de honra da Liga Independente das Escolas de Samba de São Paulo.

NARGUILÉ

Ao fim da primeira parte do ensaio, os integrantes da escola se dispersam. Um ritmista tira um narguilé da mochila e o fica segurando pela parte de vidro, enquanto outros dois tentam acender o carvão com um maçarico. Depois de breve intervalo, começa a segunda parte, a tradicional volta pelas ruas do bairro.

O locutor então anuncia Beyoncé como atração para o aniversário de 84 anos da escola, no ano que vem. Em seguida, se corrige, dizendo que a vinda da cantora americana ainda está sendo negociada. O ensaio vai se aproximando do fim e, apesar de reunir álcool e samba, combinação que muitos tomam erroneamente por explosiva, o clima é absolutamente familiar.

Talvez seja esse o grande aprendizado dessa noite: Carnaval é família. É comunidade. Poucas vezes na vida me senti tão acolhido no meio de perfeitos estranhos. Impossível ir a um evento desses e não voltar minimamente impactado, sobretudo pelo amor que todas aquelas pessoas demonstram umas pelas outras e por algo tão etéreo e abstrato quanto uma escola de samba.

Se é isso o que essa escola ensina, já me sinto no lucro --até porque a receita da batida de Halls ninguém quis me dar.

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