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A realpolitik será televisionada
Publicado originalmente na edição 237 da Revista TRIP, em outubro de 2014 sob o título A revolução será televisionada (só que não)

Nos últimos dois meses, o horário eleitoral gratuito foi nossa companhia diária – apesar de praticamente metade dos brasileiros (46%) ter declarado nutrir zero interesse por ele. Trip aboletou-se no sofá, passou mais de 70 horas em frente à TV e conta como tudo é (mesmo) sofrimento

Existem duas coisas neste mundo que a maioria das pessoas considera um saco monumental, mas que sempre achei excelentes. Uma delas é ler listas de aprovados no vestibular. A outra é assistir ao horário eleitoral gratuito.

Assim como me dá alegria ímpar garimpar nomes como Índio Vanderlei entre os eleitos dos cursos de arquitetura ou engenharia, recostar-me em frente ao televisor para assistir aos candidatos disputando voto na base do verbo sempre me proporciona deleite sem fim – muito embora o Datafolha tenha descoberto em pesquisa realizada no mês passado que 46% dos brasileiros nutrem “nenhum interesse” pelo programa, seguidos por aqueles que fazem parte da categoria “pouco interesse” (33%).

De minha parte, arrisco dizer que o horário eleitoral é melhor do que quase tudo exibido hoje no Brasil. Tem drama, comédia, mistério, intrigas, disputas de poder e delírio absoluto. Isso sem falar nos personagens. Claro que é uma injustiça comparar qualquer horário político com a obra-prima do gênero no nosso país, que foi a eleição presidencial de 1989 (uma espécie de Cidadão Kane do nosso programa eleitoral). Todo o carisma e animação de Ulysses Guimarães; Lá-lá-lá-lá/ Bri-zo-la; “Collor, o caçador de marajás”; Lula Old School brigando nas cabeças; a contenda paulista Covas vs. Maluf; Ronaldo Caiado montado num cavalo branco; o PG “100 anos em 5” na penumbra, durante minutos e sem qualquer discurso; um maluco totalmente em chamas chamado Marronzinho; a primeira aparição pública de Enéas; Gabeira (tum-dum-dum-dum-dum)/ Gabeira presidente do Brasil; e até uma participação especial do Silvio Santos, na reta final do programa.

Vendendo celular

O acesso gratuito de partidos e candidatos ao rádio e à televisão nas campanhas eleitorais se deu pela primeira vez em 1962, por meio da Lei 4115/1962, que criou o horário eleitoral. Em 1965, a Lei 4737 determinava que as emissoras de rádio e televisão reservassem aos candidatos um espaço diário de duas horas durante os 60 dias anteriores à antevéspera do pleito.

Este ano, me propus a assistir ao programa todos os dias, durante os 45 que antecederam a votação do primeiro turno. De saída, algo me chamou a atenção: a duração da coisa toda. De acordo com o Tribunal Regional Eleitoral (TER), são 100 minutos diários, divididos em dois blocos de 50, de segunda a segunda. Tinha esquecido que também estamos elegendo governadores. Aliás, o bloco deles era o mais fraquinho.

O programa dos presidenciáveis, por sua vez, mostrou-se bem feito, com um formato que poderíamos chamar de “clássico”, para quem acompanha o gênero. Discurso do candidato, imagens de obras e projetos do partido, depoimento de cupinchas, jingle da campanha. Tudo muito bem filmado e editado. No final, ainda podíamos ver aquela vinhetinha tradicional de alfinetada em um ou mais adversários, sem assinatura. Senti falta de depoimentos de populares, mas de resto estava tudo lá.

Do ponto de vista estético, os programas me pareceram próximos de propagandas de operadoras de celular (o que faz sentido). Jovens de todas as cores caminhando por paisagens urbanas e rurais lindamente fotografadas enquanto sorriem e olham para a câmera.

BBB e câncer

Mas isso não é nada. Os verdadeiros entusiastas do horário político sabem que o filé de qualquer programa está mesmo é no baixo clero. Neste caso, estamos falando das eleições para deputado. Sobretudo os de menor expressão. É nesse território sem leis que o bicho realmente pega. A começar por aqueles que não têm tempo pra fazer muita coisa além de dizer seu nome e número. Teve um partido que fez os candidatos se apresentarem calados, sob fundo musical, enquanto surgiam na tela cruzando os braços como jogadores de futebol nas transmissões de TV. Graças a algum tipo de justiça poética (ou ironia cósmica), aparecia entre eles ninguém menos que Marcelinho Carioca. Fiquei surpreso, aliás, com a baixa incidência de ex-jogadores neste pleito. Além de Marcelinho (e Romário para senador), lembro de ter visto apenas Ademir da Guia e Dadá Maravilha. Também me surpreendeu o baixíssimo número de ex-BBBs na disputa: apenas Maria Melilo, com uma plataforma direcionada a pacientes com câncer.

Classe que teve adesão maior ao jogo político, por outro lado, foi a dos músicos. Em pouco mais de vinte minutos vi: Leci Brandão, Frank Aguiar, o eterno Netinho ex-Negritude Jr. e Leandro do KLB, com direito a Zezé di Camargo e Luciano pedindo voto para amigos. Ainda no bloco dos artistas, vale um destaque tanto para a inacreditável campanha do Tiririca, com a polêmica imitação de Roberto Carlos e a já clássica cena dos bifes, quanto para o seu nêmesis, o Palhaço Charles, que aparece vestido de Carlitos e segurando uma foto sua em trajes civis. Achei forte.

“Quem pensa muito, faz pouco”

Na grande faixa dos desconhecidos e aventureiros em geral, os discursos são incrivelmente pasteurizados. Não há espaço para nada muito diferente. Dá para separar a esmagadora maioria dos candidatos nos seguintes grupos: a) os que defendem o direito dos animais; b) os que pedem mais polícia na rua, endurecimento das leis e diminuição da maioridade penal; c) os que lutam pela saúde; c) os que militam pelo direito dos homossexuais; d) deficientes em cadeiras de roda, muletas ou sem membros (fui bastante afetado, por sinal, por um grupo de anões em cadeiras de roda, de muletas e sem braços).

Dentro dos blocos temáticos ainda vale lembrar os representantes de classe, como coronéis, delegados e professoras, os primeiros dois vociferando contra as drogas e clamando por segurança e as últimas advogando estoicamente em causa própria. Médicos, que historicamente costumam ter presença forte nas eleições, este ano estavam meio em baixa.

Também não estavam muito bem cotadas as rimas (no estilo “por saúde e educação, vote no Alemão”) e as musiquinhas de candidato. Estes, aliás, merecem um trecho a parte. Sou fascinado por este tipo de político, que mesmo concorrendo a um cargo de menor destaque, paga compositor, cantor e aluga estúdio para produzir um jingle próprio. Entre as maiores surpresas deste ano, destaco o fato de praticamente ninguém ter tentado se apropriar das manifestações de junho do ano passado, contra a maioria das previsões. Só o PSTU incluiu a imagem icônica da bugrada subindo em cima do Congresso Nacional no seu espaço – e mesmo assim, não muito mais que um segundo.

Pra encerrar, uma confissão. Após notar um padrão curioso (e até certo ponto previsível) no discurso dos candidatos jovens, certa noite decidi conduzir um animado drinking game. Toda vez que alguém usava a expressão “vote no novo”, eu virava um martelinho de uísque. Originalmente pensei em incluir também a palavra “mudança” na brincadeira, mas ainda bem que não o fiz: em pouco mais de meia hora de programa já estava na sexta dose. Por conta disso, não posso afirmar com 100% de certeza que o candidato Russo tenha realmente encerrado seu apelo dizendo “quem pensa muito faz pouco”, mas: tomara que sim.

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