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Ímpar
Publicado originalmente no blog Tripa Nelas Tudo, em julho de 2005

Volto meus volteios, voleios e outras vicissitudes menos importantes para escrever para ti, descrevendo a Parati que conhecem apenas os nativos, os locais e os poucos privilegiados que colecionam coragem para experimentar todos os delírios que aquelas ruas infinitas nos propõem. Há tanto aqui contido que nem sei o que mais quero, quando o que quero de fato é começar. Então começo: chego. É a chuva quem me recebe, ainda que fina, no rompante da noite, desmaio do dia. Perdido ainda antes de conquistar o Centro Histórico, troco simpatia com poetas portando CDs, sinto o peso da mala nas paletas e a coceira da ferida aberta em cores há pouco no braço direito. A primeira noite é breve e cara; o despertar seguinte, manhoso. Bato os olhos de fato em Parati pela primeira vez quando sento no Bambu's pela primeira vez, pouco depois da primeira vez que vivo por lá um meio dia. Sacio a sede de cerveja; ela bebe a água que chove do céu aos jorros. A chuva aperta o passo, lambisca a pele, encharca os pêlos. Eu a observo, atento. Ela permanece, inerte. Falo seu nome pela primeira vez. Ela me responde. Um calafrio, um suspiro, um SOB.

Atento aos pormenores e conectado às melhores fontes, fiquei ali mesmo naquela mesa tentado a buscar a diversão prometida pelo coquetel dançante do escritor portuga propagandeado em pequenos papelotes verdescuros. A graça é que era de graça o convite; a desgraça é que chovia, ainda, e tudo realizar-se-ia no único logradouro paratiesco desprovido de teto. Também era o único com uma bandeira de arco-íris e uma placa de azulejo onde lia-se "massagens" ao lado da porta de entrada, mas isso já não parecia mais ter qualquer relevância depois da gratuidade etílica da promessa. Passamos pelas moçoilas da porta desviando os olhares para o topo da leve colina onde morava o bar. Havia Cintra clara e escura, ambas tenebrosas representantes da classe. Também havia uma contida ração de Itaipava, menos ainda coquetéis de pinga nativa, empadas de camarão e queijo, pão, cenoura e gengibre. Os pingos mais gordos de chuva estalavam como tapas na nuca enquanto eu dançava embriagado. Minhas mãos, menores que as gotas, flutuavam. Eu sorria. Parati era um estranho, uma estranha para mim. Ela foi dormir cedo, eu fui dormir tarde. As ruas vazias, molhadas. Eu sorria e pensava: o que é que eu vou fazer quando amanhã voltar pra lá?

Não precisei de muitas horas para descansar. Oito. Nove, talvez. No despertar me sinto sofrer resfriado, toda a roupa seca e só o par de tênis ainda molhado. Um spray de mel e própolis me promove a salvação. A testa quente resfria, os olhos fundos despertam e quando menos espero já me sinto novamente embalado pelos doirados vapores da cevada. O mesmo bar. Já não caminho mais tão perdido por entre as ruas de Parati, ou pelo menos é o que parece. Há tantos rostos mornos conhecidos, tantos cantos dantes explorados, e o mesmo poeta de rua que me jurou de ódio para sempre há um ano hoje beija maciamente o seu amor de rua entregue aos humores do inverno da cidade. Leve e calmo, sento as costas no vermelho da cadeira e espero que vendam, os meus livros, tanto quanto os pequeninos da K sentados ao lado. A frondosa planta magna sentada ali por perto nos confere proteção tanto quanto acaricia nossos cabelos gelados pelo vento. É noite. Quando chega ao meio, eu parto. Não pago a conta e em menos de minuto estou de volta à mesa velha. Um, dois respiros. Goles, fotos, abraços, calores. Uma echarpe de tule bege, palavras, um queixo, dentes. Nasce então uma vontade de ficar de pé e, depois, de caminhar por entre as centenas que entopem as estreitas vielas. Faz frio mas estou quente. O barulho me incomoda, e me incomoda aquela gente. Vamos buscar um silêncio mais nosso, um escuro mais nobre, uma penumbra, um sopro de novidade. As carrancas dos autores e não-autores penduradas nos postes nos observam. Eu e Parati ainda não somos um. Eu, febril, abano delicado quando me despeço. Vou dormir maravilhado enquanto a cidade só faz silenciar.

Embora, contudo, se ocultem segredos, omitam detalhes e picotem rebarbas, a verdade é uma só: Parati me entreguei. Me perdi, no dia seguinte, quando tive vontade de vê-la de novo e então saí sozinho da pousada pela primeira vez. Tomei um banho gelado por falta de opção, olhei o futuro do portão do casebre e depois caí. Rodei tanto solitário Parati que nem sei onde fui. Passei perto do albergue da juventude do ano passado, me embrenhei por alguns minutos em uma vila de pescadores recolhida de frio: eu de mangas curtas, tomando sol nas costas dos braços. Dividi a mesa do almoço duas vezes esse dia - uma com nativos jovens e mudos, outra com uma conspiração inteira de verão. Foi em algum desses piscares de olhos que decidi, naquele dia, não consumir mais álcool. No estabelecimento de Odores de Oliveira Neto, um suco de abacaxi e água. Enquanto o sol enferrujava nossos vislumbres, procurávamos acertar os pés no díspar das muitas calçadas que singramos. Falhamos em completar o secreto caminho das pedras, mas conseguimos obter algum êxito antropológico estudando os hábitos das Crianças Maçons de Parati e a sua complicada hierarquia. Enquanto o mundo acontece, Parati é para mim o que não havia sido até então. Dançando solto em Parati me encontro repleto. Ela me diverte, me acompanha, me apresenta Nova Parati, me compra comida e me empresta elegância e proteção ao pescoço quando finalmente me rendo ao raso da temperatura. Pelo caminho iluminado de um dia inteiro, trocamos silêncios, bancos de praça, barulho de ondas, canhões, snorkels, promessas de BallaRdins e vinhos sem álcool, logotipos vagalúmicos e um fugaz momento de verdade que morre no medo de ser maculado bem ali, no mesmo palco onde o vivemos. Parati mais uma vez me deixa e eu permito que se vá. Não existe, ainda, um plano B.

Sinto a eletricidade ainda correndo pelos braços por conta dos abraços e das faíscas que ofuscaram as estrelas quando troto de volta ao pouso. Um quarto lotado, conversas, fumaça. Eu sento e confesso: converso e disperso os assuntos. Rimos. É tarde. Todos beberam milhares. Dívidas foram perdoadas, contas mal versadas, bravatas mal ditas. Encerra-se, em certa medida, a grande alegria. Amanhã é apenas partir. O aço dos olhos ilumina o forro do quarto quando deito de costas na cama. Tenho medo de perder o horário, tenho medo de morrer de sono, tenho cento e vinte mamangavas de fogo me queimando o peito e uma quase câimbra nas faces de tanto sentir. Os primeiros raios de sol confirmam-se definitivos quando salto, insone, do colchão. Alongo os músculos das pernas e das costas, cubro os braços com lã e ganho a rua pela última vez, com um saco cheio de livros e um farfalhar imenso de vontades importunando os pensamentos. Daylight licked me into shape. I must have been asleep for days. And moving lips to breathe her name. I opened up my eyes. And found myself alone alone. Alone above a raging sea. Parati me tem por completo e eu nem quero mais sair daqui. Puxo conversa com o nativo que vende conchas, abano para o pardo dono do Bambu's que chamam de Alemão. Ele retribui o gesto. Compro um sorvete de chocolate que sorvo enquanto fico mambembe e vendo, assim, de mão em mão, os meus últimos volumes. O azul do verão demora horas até se manifestar, mas vem, e respira ao meu lado, de frente para a igreja. Em Parati, um segundo e último cone de sorvete para nós. O sol amorna. O carnaval de rua passa aqui por dentro. Olhos nos olhos, como um peixe com molho de camarão que desejava desde o primeiro dia. Um palhaço medieval cordelista muito alto e outro igualmente paramentado muito baixo perturbam o momento. Preciso ir para a rodoviária.

Sonho a viagem toda com o suspenso das emoções e vou recriando Parati à medida que ela vai ficando pra trás. Ela não olha para trás, ou, pelo menos, não a flagro assim agindo. É provavelmente mais bela a estrada que me leva ao Rio do que a que me levaria a São Paulo, mas não penso em nada disso. Penso no cartaz de "precisa-se de pedicure" em alguma das fachadas que chicoteei com um olhar, no abrir-fechar moroso das pálpebras lindas, no sabor do sanduíche de carne e queijo que mentem ser churrasco nestas terras. Penso no cafeínico olhar cortante que dizia muito mais do que todos aqueles fonemas mágicos e no barulho ensurdecedor que emanava de uma caixa metálica orgulhosa de ser super silent. Penso nos formosos tremeliques incomodados de frio, na semiótica do cartaz complexo pendurado quase na porta do Bambu's, no pequeno delicado dos pés, no surrealismo da noite do forró de rua + carnaval de rua com todo aquele povo de rua de Parati detonando o rock'n'roll hippie de rua. Penso no desequilíbrio fascinante do bravo das sobrancelhas. Penso no branco das fachadas e no colorido das molduras das janelas e das portas. Penso no irregular do calçamento, no horror do Marlin esculpido no meio do fedegoso riacho, na feiúra do séquito que persegue o Verissimo sobre a ponte. Penso nas conversas com os velhinhos simpatia da pousada Miramar, no sabor encantado da famosa cachaça Gabriela e em tudo aquilo que eu sentia quando via pela primeira vez no dia, Parati. Tudo que eu sabia, tudo que eu não sabia, o que eu queria e o que eu não sabia como querer. O que eu não soube fazer eu não fiz. Tremi, temi. Sofri quase nada: sorri. E foi certamente sorrindo que adormeci, em casa, muitas horas depois de já ter se apagado por completo o som do motor.

Acordo em uma Porto Alegre menos gélida do que podia esperar, estalo os nós dos dedos e os mordo. Removo a poeira do meu quarto. Meus pensamentos ainda não estão claros, não consigo mais fazer contas. Livros, livros, livros, panfletos, mapas, canhotos, lembranças: tudo abarrota os bolsos das calças. Uma semana de afastamento, quase mil missivas eletrônicas aguardam retorno. Respondo-as durante o dia, enquanto também ouço alguns discos nos quais pensei longe de casa. Marco novas viagens, faço planos, perco a concentração. Escuto o vizinho do lado tocando acordeão. Sua filha pequena dorme, acredito. Faz sol e um quase calor. Fugi do glacial daqui e fui lá tão longe encontrá-lo, de modo que em nada me decepciono com o curto confortável das mangas. Preciso mesmo deixar que a marca nova na pele respire, enquanto a unto com pomada. Meu descompasso ainda é evidente. Primeira vontade que me consome ainda antes de abrir os olhos é a de buscar, mais uma vez, a lendária loja Miosótis, mais forte entre as lembranças paratiescas de 2004 que não me sorriu às vistas em 2005. Mas depois encolho os olhos. Lembro do Morais, e principalmente que o Morais não mora mais lá. Lembro que, para minha mais profunda tristeza, o Morais foi embora.

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