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Eu matei Hunter Thompson
Publicado originalmente na Revista TRIP, em fevereiro de 2005

As tábuas de madeira suja do piso MASTIGAVAM meu TORSO em CHAMAS enquanto os olhos lutavam para manter ESTÁVEL a rotação de todas as CINCO ou SEIS paredes do quarto. Todas as britadeiras do mundo funcionavam ao mesmo tempo no meu CRÂNEO e os mais agudos alarmes espetavam meus TÍMPANOS como DARDOS quentes, furiosos e inclementes. Meus dentes, todos virados em ALGODÃO, arranhavam a língua mergulhada num AZEDO indescritível. Da boca me fugia um caldo TÓXICO e denso quase negro.

Eu estava acordando.

Ouviu-se barulho de VELCRO quando ergui meu rosto do chão, descolando-o do VISCO salgoso que aderiu à minha barba como RESINA vegetal. Meus braços de CREME; minhas pernas, GELÉIA. Consegui sentar na BUNDA e por lá estacionei. A menos de uma JARDA de distância, recolhido à característica posição FETAL dos EMBRIAGADOS, jazia, sem chapéu nem óculos, Hunter Thompson. Torci o pescoço na direção oposta para encontrar um último GOLE de rum doirado brilhando na garrafa entornada quase ao TODO no topo da mesa.

Mal acabara de arranhar a garganta em AHHHHH satisfeito de queimação alcoólica quando JUAN nos encontrou e, aos URROS, decretou: o FIM da noite havia chegado.

Por mais que apertasse as PÁLPEBRAS em esforços, àquela hora eu ainda não conseguia entender direito o que estava acontecendo. Meu estômago, aos reviros, comandava SINFONIAS proibidas, e os sentidos todos ainda me traíam BARBARIDADES. Assisti, apático, a toda a movimentação dos médicos. Ouvi, imóvel, as perguntas da polícia e as lamúrias de Anita. O sangue endurecido no OCIDENTE da penugem facial só fui remover depois do DESMAIO que sofri quando tentei ficar ERETO sobre as pernas. E nem fui EU quem removeu. Quem foi não sei.

No gelo das gotas da ducha GRINGA foi que as lembranças começaram a se DESCRISTALIZAR, e pude recompor, aos poucos, a verdade mais assustadora que já me trespassou as entranhas: Hunter Thompson estava MORTO. Pior: EU havia MATADO Hunter Thompson.

Provavelmente.

Ou, no mínimo, não o havia IMPEDIDO.

Mas que véio fiadasputa era o STOCKTON. Combinamos de nos ver pelo menos umas QUINZE vezes antes de conseguir, finalmente, CONSUMAR o encontro no domingo último, dia 20 de fevereiro de 2005. Ainda que seja um GREMISTA inveterado, sempre que passava pelo COLORADO lembrava de bater um FIOZITO esperto para a OWL FARM em busca de parceiro para uma noitada. Quando estava em Porto Alegre, ele fazia o mesmo. O problema é que NUNCA aparecíamos no lugar marcado, perturbados por algum desses muitos desvios que a vida DESREGRADA sempre nos proporcionava.

Pois nesse domingo foi DIFERENTE.

Eu, me sentindo uma genuína ÁGUIA CARECA, tentava alçar VÔO enquanto corria de braços abertos por um BOSQUE após ter enchido a cuca de COGUMELOS MÁGICOS. Perto de uma CHOUPANA rústica de onde escapava uma sinuosa coluna de fumaça, tropecei num imponente e letal URSO CINZENTO, motivando todo o tipo de BERROS de protesto. Adotei postura de ATAQUE, mas, antes que pudéssemos nos ENGALFINHAR em embate SANGRENTO, eis que se ouviu um estampido SECO, e a fera SUCUMBIU ao solo.

– Mas que diabos você pensou que estava fazendo? – observou, mastigando CADA palavra, este velhote de chapéu de COWBOY e ray-ban amarelo que se aproximava MANCANDO com o rifle e a BAGANA pendurada no canto da boca igualmente FUMEGANTES.

Era o HUNTER.

Sorrimo-nos em contentamento MÚTUO, estapeamo-nos as PALETAS em um quase-abraço e cobrimos a carcaça do animal abatido de COICES às GARGALHADAS durante alguns minutos, até que começou a ESCURECER.

– Vamos até a minha casa. Não é longe daqui. Quero lhe apresentar para os meus AMIGOS.

Fumamos o que restava da ponta no caminho até o PÓRTICO de seu rancho, que se encontrava encerrado no mais profundo SILÊNCIO àquelas horas iniciais da noite. Anita e Juan ainda não haviam regressado de sua incursão à cidade em busca de MANTIMENTOS e apenas os milhões de GRILOS faziam barulho nos arredores.

Segui o bom Doutor até o seu ESCRITÓRIO, onde ele me ofereceu ASSENTO e estendeu a primeira CARREIRA da noite sobre o tampo de vidro da mesa enquanto alisava a CARECA.

Recusei, POLIDO:

– Não cheiro COCA, obrigado.

Sua face ANOITECEU em ódio.

– Do que você está falando? – e um punho fechado golpeou, violento, a mesa – Você acha que eu desperdiçaria minha preciosa COCAÍNA com um BRASILEIRO? Isso é PCP, e acho melhor você botar tudo pra dentro AGORA, antes que as coisas fiquem FEIAS.

Obedeci.

Senti seu hálito por entre as TOSSES que escarrou ao fim da gargalhada de ESCÁRNIO que soltou quando virei a cabeça para trás. Minhas narinas e toda a GARGANTA ardiam EM BRASA e o sangue começava a correr cada vez mais GELADO nas veias. Ele TRINCAVA o sorriso e franzia a testa enquanto abastecia sua própria NAGA com uma dose duas vezes maior do mesmo pó que me havia OFERTADO.

– Muito bem. Agora você está preparado para conhecer os meus AMIGOS.

Confortável como um PAXÁ, Hunter abriu uma das gavetas da ESCRIVANINHA que sustentava o aparelho de FAX e de lá retirou dois revólveres MAGNUM: uma 44 cromada e uma .357 niquelada de cano longo e com mira telescópica.

– Esta é CECÍLIA – disse, segurando a 44 – e esta, ARTHUR – apontando a .357 – Qual das duas você prefere?

Fiquei sem fala.

Ele insistiu.

– Vamos, rapaz, qual das duas você prefere?

Apontei a CROMADA.

Ele pareceu SATISFEITO com a escolha, enquanto abria o tambor e deixava que todas as balas de seu interior fugissem e ESTALASSEM ao baterem sobre o tampo de vidro da mesa. Com o tambor ainda PENDENDO pro lado de fora da arma, interceptou apenas UM dos CARTUCHOS e o inseriu em um dos espaços vazios. Fitou-me decidido e sério, quebrou o PULSO em vias de encaixar novamente o tambor e proferiu, em tom DEFINITIVO.

– Então está decidido.

E largou a arma sobre a mesa.

Confuso, tentei fazer menção de me PRONUCIAR, mas ele levantou-se em um RODOPIO supersônico e foi abrir um armário há dois passos dali, como se houvesse esquecido do que estava fazendo. Achei melhor assim. Quando se voltou para mim, trazia dois copos GENEROSAMENTE recheados de RUM nas mãos e uma fileira comprida do que pareciam ser SELOS pendurada nos lábios. Era a secção VERTICAL de uma cartela de MICROPONTOS do tamanho de uma folha de oficio, logo fiquei sabendo. Oito figurinhas - quatro para cada um.

De frente para um homem drogado, bêbado e armado, eu não poderia NEGAR nenhum dos MIMOS que me quisesse fazer enquanto estivesse em sua propriedade, então nem discuti. Abri a BOCARRA e acondicionei, com cuidado, toda a coleção colorida por sobre a língua. Hunter fez o mesmo, sentou a RABA na sua cadeira, acomodou os dois pés em CRUZ sobre a mesa e abriu outra gaveta, de onde tirou um caderno muito grosso, pesado de tanta TINTA, que arremessou com precisão de DISCÓBULO no meu COLO.

Curvei o corpo para suavizar o IMPACTO e, quando parei os olhos na figura do bom Doutor, ele já havia puxado o CÃO da arma e girava o tambor com o dedo no GATILHO.

– Leia para mim – disse, enquanto RANGIA os dentes e encostava a arma nas TÊMPORAS.

Click. Alívios. Escândalos em risos.

Meus olhos tentavam entender as palavras, mas àquela altura as VOGAIS haviam proclamado sua própria REPÚBLICA, e, rebeladas, combatiam as CONSOANTES com voracidade e garra, posto que estavam em EVIDENTE minoria numérica. Venciam também, as VOGAIS, por conta da ajuda da nuvem de MORCEGOS e PTERODÁTILOS e da horda de HOMENS-LAGARTO que se lançavam sobre os adversários, que tinham ainda contra si o AZAR de ver suas armas falhando sucessivas vezes. Eu acompanhava os cliques secos e os não-estampidos das CONSOANTES com certa alegria. Havia escolhido meu lado: eu era VOGAL até morrer.

Mas, no fim, as CONSOANTES traziam no bolso um derradeiro truque.

Ouviu-se o maior ESTRONDO de toda a história e ergueu-se, em seguida, um horrendo cogumelo ATÔMICO sobre a página, VARRENDO da face da terra não só os inimigos como a tudo e a todos que dividiam o mesmo espaço naquele tempo.

And then, i passed OUT.

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