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Onde foi que o rock errou?
Publicado originalmente no portal G1, no dia 27 de junho de 2009

Três e meia da manhã de sexta-feira (26). Os termômetros mais otimistas acusam 9 graus, mas a névoa úmida que paira sobre as ruas de Porto Alegre agrava ainda mais a sensação de frio. Meus tímpanos parecem escorrer pelos ombros enquanto atravesso a Independência silenciosa em direção à longa fila de táxis do outro lado da avenida.

Para trás, deixo pouco mais de cinquenta corajosos que ainda resistem, destemidos, aos últimos acordes da De La Rock, uma das quatro bandas que subiram ao palco do Porão do Beco nesta noite como parte das ações de encerramento da primeira turma do curso de Formação de Músicos e Produtores de Rock da Unisinos - que, no fim das contas, todo mundo acaba chamando mesmo de "Escola do Rock".

Desde a inauguração do curso, em 2006, a ideia é vista com controvérsia generalizada. Quer dizer: pra que serve um diploma em rock'n'roll? Os dois anos e meio de aulas realmente fazem alguma diferença?

Elocubrações à parte, a verdade é que só existe um jeito de reponder a essas perguntas: tocando o horror em cima de um palco.

Confiando no tradicional atraso regulamentar de todo e qualquer evento minimamente musical em Porto Alegre, chego ao Porão do Beco perto da uma da madrugada e automaticamente já me dou MUITO mal: acabo de perder o show da Sargento Malagueta. Mais tarde, eu ouviria de amigos - e mesmo em conversas paralelas de estranhos - que aquela teria sido a melhor apresentação da noite. Seriam os mais maduros, os mais preparados. Infelizmente, não tenho como comprovar a veracidade das declarações, mas prefiro acreditar na sua legitimidade.

Enquanto os integrantes da Oh! faziam os últimos ajustes nos seus instrumentos, eu me distraía observando o público, em parte por ter comparecido em um número bastante razoável para uma noite tão fria (e com futebol no Beira-Rio), e em parte pelo seu caráter pouco usual.

Claramente, grande parte da plateia era formada por colegas de aula, professores e amigos dos músicos - mas até aí, nada de muito diferente dos primeiros shows de qualquer banda em qualquer parte do mundo.

O que realmente me chamou atenção ali foi a atmosfera de extremo bom-mocismo que imperava no ambiente. Vi exatamente UM cara acender um cigarro. E careta. Poucas pessoas bebiam cerveja - não vi ninguém mandando uma VÓDEGA ou um UISCÃO. Ao meu lado, um senhor de cabelos grisalhos trajando um blusão de lã com uma inexplicável padronagem mexicana balançava sutilmente as cadeiras abraçado em sua mulher, os dois com a maior cara de serem os pais orgulhosos de alguém que passaria pela prova de fogo essa noite.

Ok, beleza... mas pera lá um pouquinho...

O rock'n'roll não fazia parte de uma TRINCA da PESADA, da qual faziam parte o sexo e as drogas?

Onde é que isso foi parar?

Não deu tempo de procurar a resposta: repentinamente a rapeizo da Oh! começou a brincadeira. Apesar de um pouco tensos, não fizeram uma má abertura. Logo de cara deu pra ver que não apenas tocavam muito bem como tinham composições próprias de qualidade. Os trejeitos e a movimentação dos caras pareceram um pouco afetados, mas naquele primeiro momento decidi creditar os deslizes ao nervosismo da estreia.

Se não ajudava muito, pelo menos não comprometia. A música, por sua vez, era bem aceitável. O líder da banda ensaiava uns passinhos de dança, fugindo radicalmente da atitude blasé que assolou o mundo do rock (sobretudo o alternativo) durante tempo demais. O começo era promissor.

Eis, então, que a primeira música chega ao fim e, depois da entusiasmada recepção da plateia, nosso amigo vocalista resolve encarnar o entertainer e começa a contar uma história. Alguma coisa sobre ele estar sempre hospitalizado e ter ouvido de uma amiga supostamente vidente que morreria doente. Bizarramente, isso era contado como se fosse algo muito engraçado, numa prosa cheia de tiradinhas cômicas e maneirismos, o que me fez pensar que talvez houvesse algo de realmente interessante por trás daquilo.

Foi aí que ele arruinou com tudo, proferindo empolgadamente, e num clima de PUNCH-LINE, a frase "eu não vou morrer de doença porque eu vou morrer de overdose!"

Deu pra sacar que ele esperava alguma manifestação de apoio. Uma gargalhada, palmas, um simples "yeah".

Mas nada.

Silêncio mortal na plateia.

Olhei pro lado e agora tinha mais um cara fumando - comigo, eram três.

Sem se deixar abalar pelo contratempo, a Oh! anunciou uma homenagem ao recém-morrido Michael Jackson, que basicamente se resumia a um chapéu usado pelo vocalista, que ainda mandou uns gritos no microfone, meteu umas dancinhas e ensaiou um moonwalk.

Tristemente, assim como a frase pretensamente rebelde, aquilo tudo acabou parecendo muito forçado, e eu perdi a atenção por alguns minutos. A essa altura eu já me sentia perigosamente velho ali no meio. Às minhas voltas, meninas tão jovens que era impossível não evocar Claudinho e Buchecha no clássico "Nosso Sonho" ("tu tens apenas metade da minha ilusão") toda vez que passavam em direção ao bar. Mais perto do palco, vi que alguém empinou uma garrafa de água e bebeu tudo, até o final, no gargalo, fazendo daquilo um ato intenso, quase performático. As meninas passaram de volta carregando uma garrafa de cerveja.

Havia alguma esperança.

Notei que Serginho Moah (do Papas da Língua) e Rafael Malenotti (da Acústicos & Valvulados) conversavam encostados em uma parede. Em instantes, Moah subiria ao palco a convite da banda e sacaria do bolso uma folha de ofício, trazendo impressa uma foto antiga, tirada ao lado do vocalista. Após breve regozijo, juntos cantariam alguns hits do Papas - como "Vem pra cá" - e decretariam o batismo final da Oh! em um clima totalmente pop e alto astral, arrancando aplausos da plateia.

Antes de sair do palco, o vocalista da Oh! virou-se para a plateia e, num último suspiro, disse: "Se alguém quiser me pagar uma água, eu tou aceitando".

Tudo indicava que definitivamente não teríamos entre nós o bom e velho espírito de destruição do rock'n'roll essa noite.

Malenotti cumpriria o mesmo papel minutos mais tarde ao lado d'Os Lordes, não sem antes enfatizar sua satisfação em estar ali, reverenciar Frank Jorge (que passou a noite toda meio quieto e sozinho, caminhando de um lado para o outro, fumando, prestando muita atenção a tudo que acontecia no palco) e exaltar inúmeras vezes o guitarrista Pooter (curiosamente, lê-se "póter"), um cinquentão aposentado pela Caixa Econômica Federal que resolveu usar seu tempo livre para ingressar no mundo do rock'n'roll. A banda subiu ao palco usando camisas pretas com o seu próprio nome estampado, destoando totalmente do visual mais moderninho da Oh!, cujo vocalista de calças vermelhas e camisa branca agora bebia cerveja (e no gargalo, ainda que na maciota) ao meu lado, enquanto era efusivamente celebrado por três amigas.

Os Lordes fizeram algo que eu realmente não estava esperando: abriram o show com um cover. Na sequência, tocaram outro cover. E mais outro. Entre uma versão e outra, encontraram espaço para encaixar algumas composições próprias até bem interessantes, mas nada que se destacasse muito.

Embora o seu frontman grandalhão e irriquieto fosse bem mais carismático que o vocalista da Oh!, no geral a banda deixou um pouco a desejar. Não vejo nenhum problema no fato de uma banda tocar um cover aqui e ali ou fazer versões de músicas que admira, mas sei lá: se eu tivesse passado dois anos estudando na Escola de Rock, ia preferir aproveitar esse momento pra mostrar o meu trabalho. As minhas ideias. A minha contribuição para o mundo do rock.

Sejamos sensatos: qual o futuro de uma banda cover? Ser a melhor banda cover do mundo é suficiente?

Pensando bem, talvez: fiquei sabendo que The Australian Bee Gees estão vindo a Porto Alegre. No começo do mês, foi a vez da God Save the Queen, supostamente a melhor imitação da banda de Brian May e Freddy Mercury (cujo nome do meio, aliás, era PLUTO, mas não que isso tenha qualquer relação com nada). Numa dessas, o crime até compensa.

Deixando essa discussão de lado, o grande momento do show d'Os Lordes aconteceu justamente quando Malenotti dividiu os vocais nos covers dos Acústicos & Valvulados que a banda tocou. Os dois vocalistas souberam trabalhar muito bem juntos, e conseguiram uma excelente resposta do público - verdade seja dita: o show d'Os Lordes pode não ter sido o mais original, mas certamente foi o que mais levantou a galera.

Quando a De La Rock subiu ao palco, perto das três da manhã, o público já era consideravelmente menor do que duas horas atrás. Escutei apenas as primeiras quatro músicas (do que seria um show de seis ou sete, no máximo). Três eram composições próprias (duas praticamente iguais e uma terceira totalmente diferente - e bem melhor -, chamada "Varal") e a outra era um cover do Foo Fighters ("Breakdown").

A máquina de fumaça, disparada em intervalos mais ou menos regulares, a essa altura do campeonato cumpria essencialmente dois papéis: preencher os espaços para dar a impressão de que o lugar não está assim tão vazio; e poluir um pouco mais o ambiente, estranhamente saudável pruma madrugada no meio de um festival de rock. Onde estavam os banhos de cerveja? E o abuso de substâncias ilegais? E o atentado contra a moral e os bons-costumes? Não lembro sequer de ter ouvido um palavrão a noite inteira. Uma blasfêmia que fosse. Um altar de sacrifício. Acho que não mataram nem uma MOSCA por lá. Onde estavam as ninfetas nuas? E a lascívia? E a luxúria? Contei apenas UM CASAL se pegando loucamente num canto da pista. Um casal.

Sentado no banco gelado do táxi, eu tentava ignorar o motorista reclamando da temperatura extremamente baixa do motor do carro e lutava bravamente pra evitar citar Lobão, porém fracasso: onde foi que o rock errou?

Uma reposta possível: não sei.

De acordo com um balanço informal da noite, porém, posso dizer que voltei pra casa triste por não ter visto o show da Sargento Malagueta, mas pelo menos vou dormir feliz sabendo que nesse meio ainda nem se sonha em discutir a obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão.

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